quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Jurema






Mesmo que já tivesse mais de 20 anos, Lucilene se encantava com o mundo como se fosse uma criança. Em alguns momentos enquanto andava pela rua, tinha vontade de dançar e desfilar ao invés de caminhar. Abraçar ao invés de apenas cumprimentar. E sorrir das lembranças boas que sempre retornavam à sua mente. Na maior parte das vezes, a despeito de dançar e cantarolar quando estava sozinha em casa, apenas sorria. Enquanto arrumava a casa e tocava no rádio aquela música que mais gostava, sentia-se grata sem saber que existia e por isso, era feliz.

Na laje, deitada sob o sol, era capaz de apontar para o alto e pegar os raios com as próprias mãos, porque o sol pulsava em seu coração, em cada célula do seu corpo. Seus braços formigavam com a água oxigenada, mas a dormência que sentia era a alegria por sentir que ficava mais bonita para o baile de sábado. Cada gota de suor que escorria pelo pescoço carregava a essência da felicidade que habitava Lucilene.

Na sala, Andressa, sua filha, era a própria alegria manifestada em um corpinho de 3 anos de idade, que passava horas diante da TV assistindo o programa da Galinha Jurema. Lucilene não se incomodava, porque o pai de Andressa ia e voltava, quando voltava trazia dinheiro e ela sentia que era uma boa mãe, Andressa não passava fome, estava matrículada na escola e se distraía fácil com a TV, só assim conseguia fazer suas coisas: "Vai ver televisão que eu ainda tenho uma casa inteira pra arrumar!".

As cores de Jurema deixavam o coração de Andressa tão entusiasmado quanto os raios de sol alimentavam a euforia de Lucilene. Toda manhã enquanto lavava a louça do jantar do dia anterior e preparava o almoço na cozinha, escutava os berros da filha: "Mão na bundinha! Bate asa galinha!". Passava sempre pela sala sem olhar para a filha sentada no colchão, desviava das bonecas cabeçudas espalhadas pelo chão, os cabelos embolados, sujos e tão mofados quanto as paredes cheias de infiltração. Toda vez que lá em cima na laje alguém pulava, um pedaço do reboco do teto caía e enchia de poeira a TV e o berro de Lucilene: CARAAAAAALHO! JÁ FALEI QUE NUM PODE FICAR PULANDO NESSA PORRA?!

Andressa só assistia, Jurema e os gritos de sua mãe e às vezes os gritos da vizinha. Assistia, mas não ouvia porque não sabia que isso existia. Gostava de gritar também. Quando gritava sua mãe chegava, se gritasse mais alto seu pai surgia, mas não gostava dele, ele batia e Andressa tinha medo, só queria fazer parte. Sua mãe está sempre ocupada com alguma coisa, sua mãe sempre atravessa a sala. Quando passa, o estalo do chinelo de borracha que bate no chão e rebate na sola do pé de sua mãe é a coisa mais incrível que existe depois de Jurema. O mundo é um lugar maravilhoso, há tantas cores na TV, há tantas pessoas lá fora na janela. Jurema é tão azul quanto o céu e o céu é lindo porque é cheio de nuvens e as nuvens lembram os braços de Lucilene com aqueles pêlos branquinhos e fofinhos que Andressa passa tanto tempo entrelaçando os próprios dedinhos...

Foram os dedinhos inesperados de Andressa que Lucilene sentiu naquela noite em que atravessava a sala para ir do banheiro à cozinha. Ficou surpresa porque Andressa nunca falava com ela, só gritava. E de alguma forma, o toque dos dedinhos despertou em si uma nova forma de sentir, uma ligação que até então era desconhecida e foi quando Lucilene pensou "eu sou mãe". Andressa puxou sua mão indicando que queria lhe mostrar algo e guiada pela menina, veio o deslumbramento de Lucilene que olhava para a situação com os mesmos olhos de 3 anos de idade que enxergavam todas as cores do mundo dentro daquela casa. Andressa se desprendeu e seguiu na direção do portão que dava para a rua: "Vamo bater asa galinha!". Lucilene obedeceu, pegou o molho de chaves enferrujadas na parede e abriu o cadeado do portão. Andressa saiu decidida enquanto Lucilene a seguia.

Caminharam até o fim da travessa, pegaram à direita na esquina, onde as outras crianças da rua brincavam de polícia e ladrão pow! pow! pow! Pow mãe! Por aqui! E Lucilene seguiu Andressa até a caçamba de lixo. A menina foi tateando pelos lados da caçamba onde um buraco existia e os sacos de lixo vazavam pelo chão da rua, Lucilene não reprimia porque não conseguia fazer nada além de observar. Sua filha dava cotoveladas e abria caminho entre o lixo para entrar no buraco da caçamba, enquanto Lucilene só apreendia porque ainda sentia o toque dos dedinhos e a percepção do quanto os humores da menina sempre foram ignorados. Ela só precisava mante-la entretida, seja com a TV, ou com um monte de lixo na rua. Se deixasse, a felicidade de Andressa sobrepujava-se à sua e essa insistência a incomodava, mas nunca se deu conta de que ao invés de deixar ou ignorar, bastava permitir-se compartilhar do mesmo sentimento. E naquele momento, viu a transformação no olhar da filha, que perdeu o bater de asas infantil e passou a movimentar o corpinho vulnerável banhado em chorume da mesma forma que um adulto: Venha!

Andressa se emburacou no túnel que abriu entre os sacos de lixo e à Lucilene restou apenas obedecer. Teve que deitar e se arrastar para caber em uma passagem tão estreita. Olhava aquela bundinha fragilizada suja de lama na sua frente e pensou naquela Alice que assistiu na televisão enquanto sentia seu próprio cotovelo esmagando merda de cachorro. Não pensava no além do que enxergava e por isso não sentia cheiro de nada. Mas quanto mais seguiam pelo tunel estreito, mas deixava de pensar no cheiro, no perigo ou na forma. No começo, sentia-se como uma lombriga gorda espremida em um intestino apertado. Onde precisava o tempo todo fazer uma força descomunal para chegar na reta final e abrir as asas para bater galinha e sentir que é livre de verdade. No entanto, quanto mais força produzia, mais se esfolava e se machucava. Até que lembrou do sol novamente e se deu conta dos raios que engolia e habitavam seu coração. Os raios não tem forma, os raios são energia, a energia é o sol e também é o seu corpo. O olhar estava sempre fixo na bunda de Andressa à sua frente e por consequencia: a clareza de que o lixo só era um obstáculo porque ela acreditava em obstáculos e demorou a perceber que era tão lixo quanto o lixo. Quando isso aconteceu, a lombriga gorda parou de se debater porque percebeu que os movimentos peristálticos existem para que ela consiga deslizar com facilidade até a reta final.

Foi como um balde de água gelada no rosto! O túnel desembocava na esquina da mesma travessa onde moravam. Parecia que havia saído do outro lado da caçamba, mas tudo estava diferente, o azul do céu era muito azul, a luz da lua carregava muita luz, as crianças que brincavam carregavam muito mais sujeira em seu encardido, o catarro que sempre escorria do nariz de Andressa estava mais verde que o mofo do rodapé de casa. O mundo estava saturado e era como se Lucilene estivesse dentro do programa da Galinha Jurema, tudo era vívido na mesma intensidade em que era chapado. Andressa correu para se juntar à brincadeira das outras crianças enquanto o olhar de Lucilene foi roubado por outra Lucilene que virava à esquina de mãos dadas com o pai de Andressa. Era uma Lucilene mais jovem, de anos atrás, que justificava o colorido daquele mundo.


Continua...


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